Tuesday, March 20, 2007

Dupla sintetiza molécula 'mãe da vida'

Dupla sintetiza molécula 'mãe da vida'

Pesquisadores decifraram estrutura de substância ligada aos primeiros seres vivos. Molécula de RNA consegue guardar código genético e promover auto-replicação.

Salvador Nogueira Do G1, em São Paulo

A teoria mais aceita para o surgimento da vida a partir de materiais inertes exige a existência de uma molécula capaz de ser, ao mesmo tempo, o ovo e a galinha: ela precisa carregar informações genéticas e também ser capaz de se auto-replicar. O dilema é que ninguém tinha visto uma molécula assim na natureza. Mas isso não foi problema para uma dupla de pesquisadores na Universidade da Califórnia em Santa Cruz. Eles a fabricaram.

Mais que isso, aliás, eles decifraram a estrutura molecular dessa substância, oferecendo novas evidências de como a vida pode surgir a partir de compostos orgânicos simples. Não é coisa pouca.

Os cientistas durante muito tempo se viram num dilema. A vida como é conhecida hoje se apóia em duas pernas: de um lado, a molécula chamada DNA (nome pop do ácido desoxirribonucléico) serve para armazenar o código genético; de outro, as atividades envolvidas no metabolismo dos seres vivos são conduzidas pelas proteínas, grandes moléculas complexas.

Problema: a vida precisava das duas coisas. Pior: o DNA depende das proteínas para se replicar, e as proteínas dependem do código inscrito no DNA para serem construídas. Surgia então a versão biomolecular do problema do ovo e da galinha: qual deles teria surgido primeiro? A chance de os dois terem aparecido simultaneamente por acidente era absurdamente improvável.

O surgimento da vida continuaria um enigma até os anos 1960, quando um grupo de pesquisadores sugeriu que uma molécula até então tida como coadjuvante no mundo dos seres vivos poderia ser a chave do mistério: o RNA.

Primo pobre do DNA

Como o DNA, o RNA (ácido ribonucléico) também é capaz de armazenar informação genética (hoje ele é usado pelos seres vivos em muitas funções, como por exemplo a de mensageiro do DNA, levando pedaços de código genético do núcleo da célula até as fábricas de proteína), mas, como ele é composto por uma fita simples, em vez de duas fitas entrelaçadas, como o DNA, acaba sendo muito menos resistente.

Em compensação, ele é uma molécula com uma capacidade de interação muito maior -- poderia, de repente, fazer as duas coisas: conter informação genética e realizar algum metabolismo, propiciando sua própria replicação. Nascia a teoria do "Mundo de RNA".

Era uma hipótese radical, que acabou ganhando muita força nos anos 1980, quando cientistas descobriram moléculas de RNA que podiam atuar como proteínas, desencadeando reações -- as chamadas ribozimas. Mas ninguém tinha visto uma molécula de RNA que promovesse a própria replicação -- de fato, ela não existe em nenhuma forma de vida atual.

O que fizeram Michael Robertson e William Scott? Fabricaram uma molécula de RNA que fizesse exatamente essa função de auxiliar na auto-replicação. "Nós temos o primeiro vislumbre de como pode ter sido essa RNA replicase", diz Gerald Joyce, do Instituto de Pesquisa Scripps, em La Jolla, Califórnia, que não participou da pesquisa, mas escreveu um comentário publicado junto com o estudo da dupla na edição desta semana do periódico "Science".

"Não está claro se a replicase hipotética do Mundo de RNA operava com o mesmo mecanismo [da ribozima criada por Robertson e Scott], mas é uma boa aposta", avalia Joyce. E a recriação oferece uma vantagem especial: "Diferentemente das enzimas de replicase de RNA que provavelmente se extinguiram mais de 3,5 bilhões de anos atrás, essas recriações modernas estarão disponíveis para investigação detalhada."

Evolução in vitro

Pode soar estranho que, ao tentar explicar o surgimento da vida por mecanismos naturais, os cientistas apelem para a criação artificial de uma molécula. Seria essa uma evidência de design inteligente?

Pela enésima vez, não. Para criar seu RNA, Scott e Robertson apelaram para um mecanismo chamado de "seleção in vitro" -- é como a seleção natural que impulsiona a evolução, mas ocorrendo de forma controlada e limitada num tubo de ensaio. O procedimento foi basicamente colocar certas moléculas de RNA aleatórias e buscar a escolha das "mais aptas", as que fossem mais capazes de fazer o que os cientistas buscavam.

Uma vez obtida a ribozima procurada, a dupla conseguiu identificar sua estrutura molecular precisa, usando para isso uma técnica conhecida como cristalografia de raios X. Ela basicamente consiste em induzir que a substância se cristalize, para depois usar o padrão de espalhamento de um feixe de raios X para identificar sua forma.

Esse foi o grande feito da dupla, na verdade -- identificar a forma. É graças ao formato que as proteínas conseguem "agir", e com uma enzima de RNA não deveria ser diferente. E o mais surpreendente sobre a forma desse RNA primordial sintetizado é que não há nada de muito surpreendente nele. Ao que parece, a ribozima funciona de forma muito semelhante às proteínas atuais. Afinal de contas, até mesmo na história da evolução da vida, é bom não mexer em time que está ganhando.

Fonte:http://g1.globo.com/Noticias/0,,MUL11604-5603-6023,00.html

COMENTÁRIOS:

Essa notícia liquida de vez a argumentação antievolucionista "DNA precisa de RNAs e proteínas e proteínas precisam de RNAs e DNA". Se assumirmos que o primeiro replicador foi o RNA, o problema desaparece.Neste caso, nem o requerimento das proteínas para ajudar na replicação de ácidos nucléicos é necessário.Os pesquisadores do "Mundo de RNA" acreditam que os primeiros estágios da evolução da vida todas as enzimas eram RNAs e não proteínas.Já se sabia que a descoberta que o RNA tem propriedades catalíticas (que inclui a atuação na síntese protéica) e pode agir duplamente como enzima e superfície de replicação abria caminho para postular que investigar como enzimas de RNA poderiam fabricar proteínas sem necessidade de proteínas não era mais o problema do ovo e da galinha.Agora que sabemos que o RNA pode agir duplamente e ao mesmo tempo como enzima e superfície de replicação, esse problema está definitivamente solucionado.

Se acontecer o caso de sintetizarmos um sistema com molécula auto-replicante e com capacidade metabólica, teremos o realizado o sonho dos bioquímicos.Isso porque a definição de vida se resume a existência de um sistema coordenado de reações químicas contribuindo para sua manutenção e a replicação hereditária.Neste caso, teríamos criado de forma experimental um modelo simples de origem de vida.Essa notícia mostra que o primeiro passo para a realização dessa tarefa já foi dado.